segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Porco e Pimenta : Berenice


Berenice
[ao lado, o desenho no qual eu cheguei mais próximo de representa-la ]


- Por favor, passe o sal?
Foi Berenice quem falava no almoço de domingo com a família, e tinha certeza que um pouco de sal iria bem no suco-de-beterraba que bebia. Então a familia começou a se movimentar em pró do pedido, de primo pra tia, de tia pra tia, de tia pra avó, da avó pro irmão, que passou pra Berenice.
- Obrigada - seguido de um d'nada coletivo.
A menina, com sutileza, bateu a bundinha do saleiro na mesa fazendo um barulho seco e curto, que não atrapalhou a faladeira da família, e com mais sutileza, colocava calmamente as pitadas de sal no suco de cor roxa.
O frango, numa posição constragedora sobre a bandeija de prata, soltava fumaça, lhe faltavam as coxas e a cabeça, e o peito estava dilacerado também, os assassinos comiam calmamente, escutando agora uma história que o avô contava, com cara de orgulhoso, sobre uma guerra que participara anos atrás, quando a TV ainda não tinha cores, talvez nem TV existisse na época.
- Você põe sabão ou cândida?
Foram as palavras que Berenice captou no ar, tinha certeza que quem dissera fora a tia Prímula, que usava um laço pérola na cabeça, enfeitando seus longos cabelos loiros e bem cuidados, que faziam ressaltar seus olhos redondos e seu nariz-batata, ela estava usando o celular, prata e fino, que combinava com todos os seus quatro anéis, que enriqueciam seus quatro dedos, deixando o anelar pelado, de longe via-se que a tia Prímula não era casada, nem noivada, o que não era problema aos olhos de Berenice, mas em contrapartida, causava burburinho na parte velha da família.
Berenice agora parou de confabular sobre a solteirona, e olhava seu reflexo numa colher que acabara de lamber (o ato deixara sua lingua com sabor de molho rosé), a menina conseguia distinguir seu cabelo castanho, em coque, e seus olhos pareciam enormemente grandes, e suas bochechas, que outrora foram magras e sardentas, agora estavam gordas, tortas e manchadas, no reflexo, sua boca estava pequena demais e seu queixo estreito demais, Berenice teve medo de não reconhece-la mais após ter visto imagem tão bizarra de sua face, então, de supetão, jogou a colher longe, insutileza da parte dela, a colher bateu com força na parede e depois caiu no chão, com um barulho agudo.
Berenice estava de pé, e tentava ao máximo achar um lugar pra se esconder, a familia inteira estava boqueaberta, a tia Prímula desligara o celular, alegando estar ocupada, o avô estava paralisado, com uma parte do frango assassinado ainda na entrada de sua boca murcha, ainda não mordia a prova do crime.
- Berenice? Berenice?! - perguntara e gritara a mãe da menina, respectivamente. - O que foi isso?
A mesa estava em silencio, e Berenice escondia o rosto com as mãos, suas unhas roidas e mal pintadas de lilás ofuscavam os olhos, que virados à garota, pareciam estátuas. Berenice estava linda do seu jeito, usava um vestido com alguns detalhes de flores-do-campo, e uma sapatilha, seu cabelo, em coque, era castanho, seu rosto era pintado com pequenas sardinhas, seus lábios pareciam dois filetes de tinta vermelho-carmim, distanciados, mostrando uma cara digna de susto, ou medo, seus olhos redondos e castanhos eram tapados pelas mãos.
- Me desculpem - ela falava desafinando - é que eu vi uma coisa feia ali dentro.
- Dentro da onde, Bê? - o primo mais novo perguntou, esperando uma resposta como: no báu-da-morte.
- Dentro da colher que joguei, oras pipocas!
O primo parecia aliviado e decepcionado, ao mesmo tempo, e a familia continuava sem saber o que dizer. Berenice então voltou ao seu lugar, e a familia resolveu que, o silêncio, era a melhor forma de apurar o fato. Mais algumas conversas, e as pessoas que davam as ultimas garfadas iam subindo as escadas, que levavam pro andar superior da casa, e se espalhavam pelo mundo, para que no próximo domingo pudessem se juntar novamente.
Berenice, naquele dia, espetou a ultima azeitona com muita dificuldade, e comeu-a, o prato agora vazio foi levado à pia pela menina, e deixado sob a pilha de louça, Berenice então resolveu que era hora de subir as escadas.
No andar superior Berenice não achou nada de interessante, a não ser o bidê, mas esse esrava sendo usado pelo primo Esteves, que lavava o pé numa posição curvada, o outro pé, que ja tinha sido ensaboado e enxaguado estava sustentando o corpo inteiro, numa toalha azul no chão.
- Hey! Berenice.
- Olá, Esteves, como vai a unha encravada? Berenice tinha o dom de fazer as perguntas mais incovinientes.
- Ah! - o primo Esteves olhou para o próprio pé, no bidê, e se deparou com a unha do dedão, inchado e roxo - Está melhorando.
Berenice sabia que estava tão ruim, que o primo já havia se questionado em amputar o dedo, talvez a perna inteira.
- Bom - ele continuou, agora sorrindo, e quase que por vingança, perguntou, inocentemente - Que cena foi aquela, no almoço?
- Foi só uma imagem feia que eu vi - Ela agora se balançava no próprio pé, e sentindo-se na obrigação de se explicar melhor, disse, meio rouca - Na colher, sabe?
- Você é doida, Bê.
Aquelas palavras saindo da boca de um menino prestes a amputar o corpo por causa da unha soaram pior do que se o proprio Papa viesse pessoalmente e falasse a mesma coisa."Você é doida", talvez seja essa a frase que Berenice mais ouvira na vida, no dia que cantou 'macarena' no velório da tia Domingas, falecida tia Domingas, na tarde em que ela montou uma peça, onde os atores eram espiritos tetraplégicos, ou então em todas as vezes que ela jurou escutar uma música que ninguem estava escutando.


[ ainda não escrevi uma continuação, mas terá ]

2 comentários:

Tüppÿ disse...

HUAHHUAHUAUHAUHUHAHUHAUHUAHUAHUUHA

Que liiiiindo, Careli *.*

Te linkei, ok?

Muito Luna, a Berenice \o/

Anônimo disse...

Esse é ainda melhor que o das moscas!
O texto tem humor, mas não chega a ser patético. Na verdade é difícil de explicar porque eu gostei, mas a narrativa e o desenvolvimento estão ótimos...